Saneamento: Lei 14.026 não parece ter trazido tranquilidade.

Fundamentar as mudanças no setor de saneamento na ineficiência generalizada das Companhias Estaduais pode agravar a situação.

Completam-se dois meses da sanção do chamado “novo marco regulatório do saneamento”, transformado na lei nº 14.026/2020. A euforia de uns e o desalento de outros com sua aprovação não parecem ser proporcionais as reações, positivas e negativas, sobre o conteúdo deste texto legal.

Ao contrário, de repente, Companhias Estaduais de Saneamento que não resolveram os problemas de falta de água ou de ausência indefinida de serviços de esgotamento sanitário em cidades sob sua responsabilidade, surgem como interessadas em disputar licitações em outros Estados.

Buscam disputar com empresas privadas concessões para assumir serviços semelhantes aos quais não conseguiram – às vezes não sabem como e quando conseguirão – atender com o mínimo de eficiência e qualidade.

Pergunta-se: o que pensarão os clientes atuais dessas empresas em cidades onde não tem água regularmente? E os das cidades em disputa, como aceitarão ser servidos por quem deixou para depois algumas pendências graves?

E não se trata de desconsiderar que as Companhias Estaduais fazem muito para as condições internas e externas a que estão submetidas há pelo menos trinta anos , em geral. Trata-se de olhar para o mundo real, hoje submetido a uma visão particular e reduzida a dicotomia da Companhia Estadual sempre ruim x operador privado sempre eficiente.

De outro lado, ao que parece, os privados, encarados por parte do Governo Federal como os cruzados da nova era do saneamento, os quais, com “seus” investimentos, tomariam e tomarão conta de todos os serviços em todas as cidades, estudam e avaliam até que ponto dá para acreditar no que está dito e escrito.

Parecem estar se adaptando ao período pós-euforia, descobrindo que a insegurança jurídica é algo simples diante da insegurança administrativa oriunda do ilimitado poder público. Se depreende que o comportamento um tanto incerto do Governo Federal quanto a forma como atuará junto a municípios e Estados para viabilizar tantas licitações, em tão curto prazo, exige cautela.

Já se tem consciência que a meta de 2033, tanto no tempo quanto a valores, será revista naquela data independente de haver uma maciça participação do setor privado ou não. Bem como o conceito praticado para avaliar perdas com base em números generalistas em conteúdo.

As mudanças necessárias que a revisão da lei nº 11.445/2007 provocaram, trazem, salvo engano, grandes responsabilidades para o Governo Federal, como proponente, normatizador e avalista de um modelo que, infelizmente, não pode ser nacional ou aplicável em qualquer lugar.

O próprio conceito da universalização merece ser visto sob a mesma ótica da praticada para a distribuição de energia elétrica e telefonia, respeitados os desafios e características dos serviços de água e esgotamento sanitário, bem diferentes em termos de CAPEX e OPEX, além do confuso e frágil ambiente regulatório que rege o setor.

Questões relevantes associadas a regionalização ou formação de blocos atrativos para o setor privado, como a inviabilidade financeira x níveis de saúde pública necessários, dificilmente serão respondidas com o mesmo modelo de tarifas e subsídios praticados até hoje no setor.

A situação atual após a sanção da lei, aparenta ter elevado os riscos para a sociedade, pois o ambiente de competição criado estimula a disputa para ganhar contratos, como nas licitações de obras de engenharia, quando se sabe que as concessões tem caráter de serviços público e não de investimentos em obras.

Por mais que se tente nivelar o setor de saneamento a infraestruturas como estradas ou portos, cada vez mais ele parece insistir em mostrar suas “esquisitices” locais que o tornam diferenciado para o mercado. O setor de saneamento não se resolve com uma equação simples, sendo mais parecido com uma inequação onde a saúde pública sempre será maior que todos os outros membros.

A ausência de sinais mais evidentes de organização do processo pós-“novo marco”, pode atrasar mais ainda o alcance da universalização e criar os “nem, nem do saneamento”, representados por municípios/regiões onde apesar da existência do serviço, enquanto se resolvem questões licitatórias e jurídicas, não serão gerenciados nem por públicos, nem por privados.

Resta esperar que Estados, municípios e o próprio mercado, façam um verdadeiro pacto social, técnico e econômico pelo saneamento como prioridade nacional, de modo que as iniciativas de melhoria de antes e de agora, não se percam em disputas empresariais.

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

12 Comentários em “Saneamento: Lei 14.026 não parece ter trazido tranquilidade.

NEWTON AZEVDO
18 de setembro de 2020 em 08:53

Álvaro como sempre suas palavras mostram a realidade do saneamento.
Este assunto não merece o respeito dos governantes há muitas décadas.
Estejam certos que este tema estará presente nos programas dos candidatos nas próximas eleições,meramente como mais uma mentira
Parabéns

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Álvaro Menezes
18 de setembro de 2020 em 10:44

Prezado amigo, obrigado mais uma vez pelo comentário e por sua reiterada preocupação com o saneamento. Abraços.

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Paulo Piramar Dantas Correia
19 de setembro de 2020 em 08:11

Infelizmente é nossa realidade e com a eleição próxima se aventa muitas falácias.

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Álvaro Menezes
21 de setembro de 2020 em 16:04

Obrigado caro Paulo por seu comentário.
Abraços.

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Maria Edith Costa
19 de setembro de 2020 em 08:41

É uma triste e dura realidade que, infelizmente, continuamos a acompanhar a cada ano!
Muito bem exposta, como sempre, meu amigo!
Só nos resta ter fé nas instituições e nos técnicos abnegados como você, para que isso mude!
Porque, dos nossos politicos,já sabemos o que sai! Ou melhor, o que entra pra eles…

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Álvaro Menezes
21 de setembro de 2020 em 16:04

Olá amiga Edith. Obrigado por ler e comentar o texto.
Abraços.

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Pedro Mota
19 de setembro de 2020 em 09:07

Nos tempos atuais não teremos nenhuma lei que irá abranger a plenitude, principalmente quando se fala em concessões de 30 anos ou mais, além dos interesses múltiplos. Para minimizar este impacto há instrumentos que poderá coibir aqueles que não são capacitados a entrar em um certame, basta fazê-los com bons profissionais que tambem temos no mercado.

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Álvaro Menezes
21 de setembro de 2020 em 16:03

Obrigado por compartilhar seu comentário. Abraços.

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Marlon do Nascimento Barbosa
22 de setembro de 2020 em 05:38

Amigo Álvaro! Como sempre, você é incisivo e muito lúcido em tuas colocações. Passados já 2 meses do Novo Marco, pode-se afirmar que ele trouxe mais incertezas e inseguranças do que definições. Quando formos passar das teorias bonitas para a prática cotidiana do saneamento é que veremos se ele realmente “colou”. Continue nos brindando com os teus textos! Meus parabéns!

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Alvaro Jose Menezes da Costa
24 de setembro de 2020 em 14:42

Prezado amigo.
Obrigado mais uma vez por ser um dos leitores desses meus textos. Fico ainda grato por dedicar parte de seu tempo a me responder com bons comentários.
Abraços.

Responder
Leandro
29 de setembro de 2020 em 11:12

Parabéns pelo texto e a explanação de ideias.

O que vemos é mais uma vez os nossos políticos normalizarem algo que desconhecem. Neste caso sob a justificativa da urgência da pandemia do coronavírus.

Precisamos mais de aplicar, tornar efetiva as leis que possuímos e menos de novos ordenamentos jurídicos.

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Álvaro Menezes
2 de outubro de 2020 em 16:18

Obrigado Leandro por seus comentários.

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