Realismo e realidade no saneamento.

Estar atento ao decorrer do processo de mudança, é o principal papel do Estado e municípios.

O chamado novo marco regulatório do saneamento completa dois anos, tendo provocado uma das maiores mudanças no mercado desde a década de setenta, quando as Companhias Estaduais foram criadas. Aliás, há certa e forte semelhança entre a regionalização daquela ocasião e a proposta hoje como melhor solução, com a diferença de que no lugar das Companhias Estaduais estão as operadoras privadas já conhecidas e novos investidores ou operadores privados. Ainda se sente uma euforia no lado dos governos federal e estadual, porém, parafraseando Guimarães Rosa, não é no início nem fim que a realidade aparece, ela se mostra no decorrer do processo. Assim, o início promissor precisará de muitas mudanças na forma como atua o poder público, para que seja carimbado o sucesso dos modelos.

Como resultados que mais visíveis do momento atual, salvo engano, pode-se relacionar:

  • Maior envolvimento de Prefeitos e poderes municipais na discussão das soluções. Houve um certo e limitado despertar para o real significado de ser o “poder concedente”;
  • Mobilização de algumas Companhias Estaduais em busca de sobrevivência ou manutenção de sua sustentabilidade;
  • Mobilização de alguns municípios em busca de suas próprias soluções em parceria com a iniciativa privada. Muitos PMIs-Procedimentos de Manifestação de Interesse e licitações para concessões estão acontecendo;
  • Continuidade da participação do Governo Federal no apoio ao desenvolvimento de estudos para desestatização e regulação;
  • Atuação de uma agência federal no tema regulação econômica dos serviços de saneamento;
  • Redução da rejeição aos operadores privados;
  • Baixo nível de envolvimento da sociedade na escolha dos modelos e na sua implantação.

É razoável supor que o momento ainda é de transição e que não se trata da escolha entre o operador privado ou o público. A transição se dá na implementação de um processo que não deveria ter como foco um modelo único, voltado para a gestão por blocos ou regiões. Com a diversidade que o país naturalmente possui e as características dos serviços de saneamento, possibilitar a estruturação de modelos que permitam soluções locais e até isoladas, não compromete a busca pela eficiência.

Afirmações como as que consideram no limbo os municípios que não aderiram aos blocos regionalizados, preocupam por indicar desconhecimento da realidade e do realismo. Por que alguns municípios ou Companhias Estaduais não podem buscar suas soluções de parceria? É verdadeiro afirmar que os blocos regionalizados tornarão reais os subsídios cruzados, como concebidos na década de setenta ou que os municípios isoladamente não podem encontrar modelos tarifários viáveis, compatíveis com investimento que necessitam?Para uma travessia calcada na realidade, buscar os arranjos jurídicos e gerenciais que conduzam aos melhores modelos, levando em consideração não somente CAPEX, mas principalmente os aspectos sociais, técnicos, ambientais, financeiros, operacionais e jurídicos é uma necessidade pelas características que os serviços de saneamento possuem.

Evidentemente para os que consideram a aplicação de CAPEX e outorgas como indicativos de sucesso, a gestão eficiente não é a causa da boa formulação de propostas e aplicação competente de recursos financeiros, mas, sua consequência. Será verdade? Se assim fosse, pelos bilhões de reais utilizados ao longos dos últimos anos em saneamento, a situação seria outra. Olhar os modelos planejados e em implantação muito mais como novas formas de gestão com inovação na prestação de serviços para todos, sem exceção, ao invés de “contratos de obras e investimentos”, poderá ser a mudança mais significativa resultante do novo marco regulatório.

Além das metas para universalização, a capacitação dos Estados para gerenciarem por intermédio de suas agências reguladoras os contratos e também terem estruturas eficientes de fiscalização, surgem hoje como importantes fatores capazes de dar sustentação para a transição entre os modelos anterior e o atual. Nos lugares onde os serviços já foram iniciados, a prioridade deveria ser criar condições para dar segurança jurídica e legal aos contratos assinados, além de colocar em prática de modo ativo as agências reguladoras, os conselhos metropolitanos/de blocos e a fiscalização da execução dos contratos. Este papel do Estado ainda deixa a desejar e preocupa.

As experiências brasileiras deveriam servir para possibilitar avaliações realistas das oportunidades que podem surgir, quando se permite a exploração de soluções que impliquem em modelos de gestão focados na realidade de cada região e localidades, ao invés de buscar ganhos de escala financeiros como resultado principal. Às vezes, o alcance da universalização com tarifas módicas pode ocorrer de modo mais rápido isoladamente que em blocos. No entanto, tudo estará sempre associado a realização de estudos que explorem soluções sem partir de pré-concepções, buscando encontrar a solução que torne sustentáveis os contratos.

Comemorar os dois anos do novo marco regulatório deve pedir como presente a preocupação positiva, com a manutenção do seu objetivo principal que é a universalização, sem se descuidar em momento algum dos riscos jurídicos, legais, administrativos e operacionais que a falta de atuação responsável do poder público pode trazer neste instante. A realização por si só de bilionários leilões, que tendem a rarear, não pode deixar como resultado a sensação de que se alcançou o objetivo, pois a realidade ainda não começou a se mostrar, visto que o processo mal foi iniciado.

 

10 Comentários em “Realismo e realidade no saneamento.

Ivaldo
22 de julho de 2022 em 08:28

Pura verdade amigo… é muito recente e lenta a mudança…

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Álvaro Menezes
22 de julho de 2022 em 15:12

Amigo Ivaldo, você conhece bem como anda o mundo público… Abraços.

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Luiz Aversa
22 de julho de 2022 em 11:47

Infelizmente progredimos pouco.
Enquanto não se der o devido valor para o tema, andamos a passos de tartaruga. Abraço

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Álvaro Menezes
22 de julho de 2022 em 15:12

Obrigado pelo comentário. Abraços.

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Yves Besse
22 de julho de 2022 em 13:10

Como sempre muito lúcido e pragmática a visão do Álvaro . Poucos possuem essa capacidade de observar e comentar com isenção as mudanças do nosso saneamento e fazer as justas críticas que contribuem para a sua melhoria contínua
Parabéns

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Álvaro Menezes
22 de julho de 2022 em 15:11

Caro amigo, muito obrigado. Seu comentário, mais que um elogio, é motivo de orgulho, pois você é uma das referências do nosso saneamento e um mestre para mim. Abraços.

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Márcio Tadeu Pedrosa
22 de julho de 2022 em 17:31

Caro Álvaro, parabéns pela excelente análise.
E pensando nos valores das tarifas e nos impactos que terão como consequências das diferentes gestões, e como você destaca, o papel fundamental das agências reguladoras.
Fraterno abraço!

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Álvaro Menezes
24 de julho de 2022 em 15:30

Obrigado Márcio.
Abraços.

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Sandro Moyses
4 de agosto de 2022 em 19:36

Ótimo texto !!!! Define bem e de forma muito pragmática/imparcial o momento qual vivemos
na área de saneamento .

Devemos celebrar os resultados dos Novo Marco do Saneamento; celebrar mas sem ser seduzido pela euforia dos leilões “bilionários “.

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Álvaro Menezes
16 de agosto de 2022 em 21:44

Muito obrigado pelo comentário.

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